ADEMIR MONTEIRO *
Se é que existe “vida” após a morte, o velho ACM, de lá onde quer que esteja hoje, está perplexo, intrigado, com um fenômeno político que apareceu esses dias, logo após a proclamação de seu neto como o novo prefeito de Salvador. É provável que — insisto, na hipótese de haver algum nível de consciência post mortem — a própria felicidade de ver parte de seu DNA (em termos biológicos, mesmo) galgar a prefeitura ter sido eclipsada (sempre quis escrever essa palavra!) por esse fenômeno.
Quer dizer, o velho estará intrigado com seus próprios sentimentos, pelo misto de preocupação e orgulho diante de um… como direi… mini manifesto? mini posicionamento político? Vá lá, que seja uma espécie de petit manifesto do ex-presidente da Petrobrás, secretário de Planejamento e candidato do PT ao governo da Bahia em 2014, José Sérgio Gabrielli.
Orgulho diante dos princípios que o velho “coroné” baiano instaurou no organismo político local, durante décadas, baseados na perseguição, na ameaça, nas retaliações e — este era o seu diferencial em relação aos demais congêneres nacionais — no apoio total àquele que inscrevesse na sua prática política tal ideário.
Pois não é que Gabrielli, nas linhas do seu pequeno opúsculo, saiu-se tão bem como continuador da doutrina carlista, que o velho deve estar até frustrado com a linha soft do neto? Ah, se ainda estivesse entre nós! Pelegrino que se cuidasse! Não é um fato insofismável que o prefeito eleito tenha herdado, pelo menos in totum, a personalidade do avô.
Assim como votos, nem sempre é possível a transferência de características tão pessoais. Como não ocorreu com o finado Luis Eduardo Magalhãoes, nem com tios e demais parentes, ao que se saiba. Eram e são todos cordiais e educados. Talvez degenerados do chamado “estilo carlista”. Bem, há o episódio da ameaça do “nanico” a Lula, bastante explorado pela propaganda de Pelegrino. Pô, mas ele já se desculpou, né? Era inexperiente, jovem, a testosterona em dose alta, essas coisas.
Em termos de ameaças, bem aí é que José Sérgio Gabrielli expôs, não somente o estilo carlista, mas (o que realmente está preocupando o espectro de ACM) todo o elenco típico das chamadas esquerdas, desde a Revolução Francesa, mas agora adequado ao ambiente democrático e neoliberal (só pra chatear, o neoliberal). É fenômeno esse posicionamento do secretário de Planejamento, no sentido exato do tom explícito das ameaças, não só dirigidas à futura administração municipal, mas aos próprios 54% de eleitores que votaram no candidato não-petista.
Os revolucionários franceses fizeram barbaridades para justificar a derrubada da Monarquia e a degola do pobre idiota Luis XVI. Inclusive deixaram morrer na masmorra, da maneira mais desumana e atroz possível, um garoto de dez anos, o Delfin, herdeiro do trono.
Na Revolução russa, uma nobre e urgente causa também foi pretexto para atrocidades, e que culminaram, anos depois, com os assassinatos de milhões de opositores ao facínora Joseph Stalin. Esse monstro moderno é cultuado ainda no século XXI por essa turma, que diz condenar as matanças do antigo líder, mas cuja cultura autoritária, revanchista, reacionária e o espírito de tutela da liberdade individual estão entranhadas.
Comente com um desses seres de esquerda, sobre Hitler, e expressões indignadas de “monstro”, “louco”, “assassino”, “genocida”, jorram às cusparadas. Mas faça-o recordar das coisas de Stalin e a condescendência aos atos do ex-mestre dá o tom: “Não concordamos”, “foi um absurdo, não precisava”, e até (já ouvi, juro) “o companheiro Stalin exagerou!”.
O ex-presidente da ex-maior companhia de petróleo da América do Sul (a colombiana Ecopetrol S.A é que lidera agora), num texto mais panfletário que de ideias, começa ironizando mais da metade dos eleitores de Salvador, muitos que votavam no PT, de forma desrespeitosa, estúpida até.
“E agora?”, indaga o candidato a substituto de Wagner em 2014. Em seguida despeja, sem a menor cerimônia, a velha ladainha carlista e antirrepublicana da necessidade da vinculação orgânica com as instâncias administrativas Estado e União. E, como milhões de cidadãos não aceitaram o argumento, o inferno vai baixar na cidade tão logo o prefeito eleito tome posse. “… os eleitores de Salvador escolheram ACM Neto com os partidos DEM, PSDB, PMDB, PPS e PV, partidos que são ferozes opositores ao governo no plano estadual e federal ou em ambos”.
Foi Gabrielli que escreveu esse troço. O jeito panfletário percebe-se em expressões do gênero, sem base em fatos e carregadas de sensacionalismo retórico, como “ferozes opositores”. Quem acompanha o mínimo da atividade política sabe que a necessária prática opositora no Brasil quase não existe. Problemas o Executivo tem, eventualmente, mas no caso inclui-se aí questões pontuais envolvendo também membros da própria base do governo.
O secretário de Planejamento ameaça: “A Câmara de Vereadores pode ser mais um campo de batalha entre o Executivo de Salvador e seu Legislativo”. E, ele já adiantou: “só resta a oposição ao novo governo”. Saudável, mas a turma eleita da Câmara Municipal, sei não. Talvez, quem sabe, argumentos mais consistentes contornem eventuais resistências “republicanas”, se é que me entendem.
Gabrielli, antes de chegar ao ponto, tipo “olha aí, cara: ou tu se enquadra direitinho no esquema ou vai se se ferrar”, despejou, copiosamente, expressões edificantes para sustentar a “tese” carlista da vinculação umbilical Prefeitura-Estado-União, como “ação harmônica e equilibrada”, “acordo”, “cooperação”, “equilibrada cooperação”, “trabalho conjunto”, até chegar ao crème de la crème da cultura política de ACM — a aceitação, pura e simplesmente, pelo prefeito, da ”liderança e condução” do governo estadual na administração dos programas municipais.
Na prática, a proposta é: “o povo te escolheu, mas quem vai tocar o negócio somos nós”. Caso contrário, o petismo não terá pudor em lançar mão de ferramentas de agitação as mais variadas, sobretudo o aparato de cabresto dos chamados “movimentos sociais”. Gabrielli deixa isso claríssimo, usando os velhos clichês da política baiana.
“Não é do feitio da coligação vencedora com tradição oligárquica e autoritária admitir que tem que reconhecerr a importância e tamanho dos seus adversários”. De novo, a coisa do tamanho. É ameaça deslavada à população de Salvador como um todo. E ele pretende assumir o controle da Bahia em 2014.
* Ademir Monteiro é jornalista. Trabalhou no Correio da Bahia, Tribuna da Bahia e Veja.