No dia 1º de julho de 1968, quatro anos depois do golpe militar no Brasil, um homem trajando terno azul-marinho invadiu uma agência bancária do bairro de Higienópolis, em São Paulo, e gritou: “Isto é um assalto. Todos de mãos para cima!”. Ele empunhava um revólver calibre 38, que não precisou disparar. Raspou os caixas para arrecadar 23 mil cruzeiros novos (R$ 124 mil em valores atuais).
Mais tarde, uma testemunha disse à polícia que o assaltante era a cara do cantor Cyro Monteiro, famoso por interpretar clássicos do samba. Apesar da efervescência política daquele momento, não havia dúvidas, tratava-se de um crime comum, afirmou a polícia.
Se tivessem percebido as semelhanças físicas entre o sambista e o então ex-deputado do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Carlos Marighella, os policiais teriam, de imediato, concluído que o roubo fora mais uma “ação expropriatória”, eufemismo que os guerrilheiros criaram para denominar os assaltos realizados com o intuito de arrecadar dinheiro para a luta armada contra a ditadura militar.
A cena relatada em Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 732 páginas, R$ 56,50), do jornalista Mário Magalhães – ex-repórter especial e ex-ombudsman da Folha de S.Paulo –, tem o poder de sintetizar o percurso político do biografado e de muitos outros brasileiros que, sob um regime de exceção, trocaram os discursos pelas armas, pela ação. Os relatos de ação são o ponto alto da obra. Como quase todas as ideias de Marighella e de outros guerrilheiros famosos estão datadas, o livro acerta ao se concentrar no personagem e em sua história turbulenta.
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A saga de Marighella não chegou à redemocratização, em 1985. Foi encerrada antes, com desfecho trágico. Um ano depois do assalto ao banco, ele foi morto pelos militares na Alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, em São Paulo. Caiu numa emboscada montada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Apesar de desarmado – Magalhães, depois de extensa pesquisa, conclui que ele não tinha “nem um canivete” –, Marighella resistiu à prisão e tentou levar à boca cápsulas de veneno para evitar ser preso e torturado. Não conseguiu e foi alvejado várias vezes.
Filho do imigrante italiano Augusto Marighella e da negra Maria Rita do Nascimento, o mulato Carlos nasceu em Salvador no dia 5 de dezembro de 1911. Na década de 1930, abandonou o curso de engenharia civil para se filiar ao Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Combateu a ditadura de Getúlio Vargas de 1937 a 1945, foi eleito deputado federal constituinte em 1946 e cassado em 1948. Após o golpe militar de 1964, escreveu textos de apologia da guerrilha e foi expulso do PCB.
Em meados dos anos 1960, viajou para estudar guerrilha em Cuba e ver de perto a Revolução Cultural na China. Ao voltar, fundou o grupo Aliança Libertadora Nacional (ALN), responsável, entre outras ações, pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969.
O livro reconstitui os 57 anos de vida do guerrilheiro da ALN e traz revelações políticas e pessoais que, em tempos de Comissão da Verdade e julgamento do mensalão, ajudam a compreender não apenas o percurso de um homem, mas da esquerda brasileira. No campo da luta armada e da política, a atuação de Marighella foi pautada pela ideia do pensador italiano Maquiavel, para quem “os fins justificam os meios”. (Época)