MARIA AUGUSTA DA LUZ *
Especial para o Jornal da Mídia
As mãos calejadas das trabalhadoras rurais, que labutam e mexem com a terra, dia após dia, debaixo de sol a pino, para produzir o próprio alimento, não se cansam de colher e plantar, nem de rezar e esperar, o cair da chuva que não vem e o renascer de melhores dias. Mas, mesmo no Alto Sertão da Bahia, onde a esperança por muitas vezes se esvai, um lampejo inesperado surge para salvar multidões. E foi assim, como num verdadeiro milagre, que eclodiu, em meio aos quintais, antes considerados pouco produtivos, a “Revolução das Cadernetas”. O movimento em defesa da Segurança Alimentar e Nutricional, como em uma invasão não anunciada e silenciosa, se espalhou, conquistou diversos seguidores, e ganhou força ao redor das casas de mulheres nordestinas no Semiárido baiano.
Muitas agricultoras acostumadas a plantar e semear nos seus quintais, começaram a entender que o pequeno livreto não era apenas mero papel e registro. E, de repente, transformaram a ferramenta em munição, fazendo com que o simples ato de anotar nas Cadernetas Agroecológicas e gerir a produção, em apenas quatro colunas, revelasse o valioso arsenal econômico existente nas atividades diárias realizadas por centenas de mulheres do campo.
“O trabalho da mulher deixou de ser invisível. A gente não tinha o hábito de anotar o que consumia, doava ou vendia dentro do município. Não sabia o quanto nosso esforço rendia e dava retorno nos nossos quintais produtivos. Agora, todas as mulheres da comunidade já sabem. Quando fiz a anotação na caderneta, vi que, no primeiro mês, o real não saía do meu bolso e que o sustento de minha família vinha do meu próprio quintal”.
Conta, vitoriosa, a representante das agricultoras do Pró-Semiárido e coordenadora Territorial da Rede Mulher Território Sertão do São Francisco, Jaciara Ladislau, 49, referindo-se à entrada das Cadernetas Agroecológicas no processo de produção da agricultura familiar em sua comunidade.
A trabalhadora rural, moradora da comunidade de Andorinhas, no município de Sento Sé, no Semiárido baiano, está entre as “Guerreiras da Revolução” assistidas pelo Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável da Região Semiárida da Bahia (Pró-Semiárido), que vem atuando, excepcionalmente, em 32 municípios da Bahia com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), para reduzir e erradicar a pobreza.
Mais do que uma metodologia político-pedagógica inovadora, as Cadernetas Agroecológicas representam uma conquista inestimável para as mulheres do campo que sempre trabalharam arduamente para garantir dignidade e cidadania. Antes das Cadernetas, por mais que trabalhassem, as agricultoras não tinham como sistematizar o quanto produziam. Agora, o simples ato de anotar e gerir a produção transformou essa realidade.
Segundo dados apresentados pela pesquisa do Programa Semear Internacional, no período de agosto de 2019 a fevereiro de 2020, 879 mulheres rurais do Semiárido utilizaram a ferramenta e produziram R$ 1,4 milhão, sendo 41% desse total correspondente a relações socioeconômicas não monetárias. O valor médio mensal gerado por cada mulher rural foi de R$ 350,00. Foram registrados ainda 1.228 itens agroecológicos, de origem vegetal e animal, capazes de garantir a sobrevivência das famílias rurais.
Ainda conforme registros de técnicos vinculados ao projeto, “as cadernetas agroecológicas conseguiram ‘jogar luz’ naquilo que estava à sombra, mostrando os valores dos alimentos produzidos pelas mulheres no espaço do quintal, tanto no que se refere ao processo de prevenção de doenças em função das práticas de autoconsumo, quanto no que diz respeito às práticas de troca e doação (formas de proporcionar a circulação dos produtos alimentícios e possibilitar uma maior diversificação da dieta alimentar em outras famílias locais).
A Revolução das Cadernetas
A representante da Coordenação e Comissão de Gênero do Movimento CETA na Bahia, moradora do município de Pindobaçu, Marenise de Jesus, 44, conta, emocionada, que as Cadernetas são mais do que um instrumento político e pedagógico.
“Elas são uma verdadeira revolução, porque anotar possibilitou planejar a produção, fazer um comparativo da diferença do que é produzido nas diversas épocas do ano. Fui também desafiada ao hábito de exercitar a leitura sobre os quintais produtivos, agroecologia e biodiversidade. Pude ainda visualizar o quantitativo e o qualitativo da minha produção, compreender que o quintal produtivo é um território político mesmo, de enfrentamento, de geração de renda, bem além do que antes era pensado, como um trabalho doméstico apenas”, revela a agricultora.
“Como mulher, aprendi a valorizar o meu trabalho, dentro da minha família, dentro da minha comunidade”.
Além de tudo isso, Marenise destaca que o Pró-Semiárido proporcionou o acesso à oportunidade de formação, através das oficinas, das rodas de aprendizagens. “É gratificante celebrar a experiência da troca, que faz parte da nossa cultura, da ancestralidade do nosso povo. Fico alegre, no final do mês, em visualizar um quantitativo financeiro que antes não tinha noção”, disse.
Outra guerreira da Revolução das Cadernetas é Sandra Maria dos Santos Cavalcante, 37, moradora da Fazenda Alagadiço, perto do povoado de Carrapato, no município de Filadélfia, a 355 quilômetros de Salvador. Ela integra o grupo de quintais produtivos do Território União Produtiva para o Semiárido e trabalha em várias atividades junto com o marido, o agricultor Renato Cavalcante, 49. Para a trabalhadora rural, a chegada do Pró-Semiárido trouxe inúmeras expectativas e, principalmente, esperança.
“Esse projeto nos permitiu sonhar e realizar sonhos. Abriu oportunidades, mudou nossa mentalidade, nos fez enxergar além do horizonte e vermos novas possibilidades. Como mulher, aprendi a valorizar o meu trabalho, dentro da minha família, dentro da minha comunidade. Me fez acreditar que é possível permanecer no campo, acreditar na agricultura familiar e na agroecologia, produzindo e preservando”.
Ela conta que, além dos muitos investimentos financeiros feitos, o projeto trouxe esclarecimento, a exemplo das Cadernetas Agroecológicas. “Quando vejo as anotações, fico feliz, me valoriza, eleva a minha autoestima. Sou apaixonada pelo que faço. Trabalho com mudas nativas, plantas medicinais e hortaliças, criação de galinhas caipiras e árvores frutíferas. Tudo isso valorizado e incentivado pelo Pró-Semiárido. A área por onde o Pró-Semiárido passou não é mais a mesma. Mudou.Trouxe o resgate da cultura, a valorização da mulher. Vi que é possível, sim, produzir, respeitando, preservando. Não preciso sair daqui da minha comunidade, da minha região, para ser feliz, e isso é muito importante. A fome e a pobreza também reduziram”.
A realidade do projeto não foi diferente para Maria Neide Gomes, 44, agricultora do Sítio Proeza, perto da comunidade de Santa Cruz, no município de Casa Nova, a 572 quilômetros de Salvador. “Com a cisterna de produção e meus canteiros, planto coentro, cebola, alface, pimentão, abóbora, pepino. A questão da água também melhorou. Não há mais aquele sacrifício de ir para longe, com pote na cabeça. O trabalho do Pró-Semiárido nos trouxe dignidade”.
A trabalhadora conta que, antes era muito frequente a ida dos maridos para outras cidades como modo de garantir a sobrevivência. “Hoje, com a cisterna de produção, a alimentação é melhor. Mesmo quando falta chuva, já dá para ter mais um sustento. Os maridos não têm que viajar para sobreviver. A gente aprende muita coisa com as palestras, com os técnicos que acompanham o projeto e procuram saber da gente, com as rodas de aprendizagem. O nosso trabalho tá ali, na Caderneta”, conclui, satisfeita.
Já Maria Silvani Gonçalves, 61, que mora no distrito de Pinhões, no município de Juazeiro, e é integrante do Território Flor da Caatinga do Pró-Semiárido, se mostrou feliz pelo projeto chegar para atender a necessidade das mulheres.
“Foi uma bênção, chegaram os canteiros e para mim foi maravilhoso tudo. Tenho minha verdura e legumes para fazer o almoço. A gente se alimenta sem agrotóxico e fertilizante. Nossa Senhora, é bom demais! Esse foi o melhor projeto que já apareceu por aqui, porque fez a mulher acreditar nela, levantou a nossa autoestima. A gente vê o quanto ganhou, o quanto trabalhou, produziu. Os projetos eram mais para os homens, agora veio para nós, mulheres poderosas e empoderadas”.
A professora aposentada e agricultora, Ana Janete de Almeida, 50 anos, de Riacho dos Maias, no município de Várzea Nova, Território Armando Barbosa, também fala da alegria e satisfação em participar do projeto. “Fui contemplada no grupo de aves e meu marido no de caprinos. Sempre criamos galinha, cabra, ovelhas. O projeto veio para nos orientar e melhorar nosso conhecimento sobre os animais, com palestras”. A professora ressalta que os técnicos do projeto tratam com as comunidades de assuntos pertinentes à realidade local.
“Comecei a produzir, não só para o autoconsumo, mas para comercializar, o que melhorou muito minha renda. Por fim, fomos contemplados com uma pequena fábrica de temperos e produtos derivados da mandioca, onde produzimos tempero para carnes, aves, frangos, peixe, arroz. Tem também tempero completo”, conta.
Ana Janete diz que o mais importante e interessante é que passou a ter um consumidor direto, porque pode vender para a própria fábrica. “Vendemos salsa, coentro, manjericão, pimenta, aipim que produzimos. Também comercializamos para a fábrica, fazemos pães, bolos, biscoitos avoador e, na fábrica, somos as vendedoras. E o lucro da fábrica também é nosso. É muito importante, além de ocuparmos a mente, nos reunirmos e descontraimos. É uma terapia para mim que sou professora e sinto falta de gente. O projeto deu um apoio psicológico, mental. Foi um divisor de águas, do antes e depois. Valoriza a mulher, dando importância ao trabalho dela, levanta a autoestima. É tudo de bom”.
Pró-Semiárido, o Melhor do Mundo
A luz se acendeu para as moradoras das áreas mais carentes da Bahia devido às ações implementadas pelo Pró-Semiárido, que mesmo atuando no Brasil – país que segundo a WFP, maior agência humanitária da ONU, caminha para voltar ao Mapa da Fome -, alcançou em 2020, por mérito, o reconhecimento e premiação da ONU como sendo o melhor projeto do mundo de apoio a populações rurais carentes financiado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), agência de desenvolvimento rural da Organização das Nações Unidas (ONU). O projeto baiano agora ocupa a primeira posição no ranking de 231 projetos financiados pelo FIDA em 98 países.
A Bahia tem cerca de 60 mil famílias assistidas pelo Pró-Semiárido. No total, são 782 comunidades, localizadas em 32 municípios com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Até o início de 2020, foram investidos pelo projeto R$ 204,2 milhões, em ações de apoio aos principais sistemas produtivos, como a fruticultura de espécies nativas, a apicultura, a caprino-ovinocultura e a bovinocultura de leite.
O Pró-Semiárido integra um conjunto de ações do Governo do Estado da Bahia para erradicar a pobreza na região semiárida. Executado pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), empresa vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), o projeto tem como principal objetivo contribuir para a redução da pobreza rural de forma duradoura, por meio do desenvolvimento sustentável da produção, da geração de emprego e renda em atividades agropecuárias e não agropecuárias e o desenvolvimento do capital humano e social.
O secretário de Desenvolvimento Rural, Josias Gomes, demonstrou satisfação com as ações executadas pelo Pró-Semiárido e com os resultados que vêm sendo obtidos com as Cadernetas Agroecológicas. “É importante porque permite que as agricultoras familiares se incorporem ao processo de desenvolvimento econômico geral do estado”. Gomes destacou ainda a importância de replicar o trabalho com as Cadernetas Agroecológicas em todo Brasil. ” Essa ferramenta busca a liberdade econômica para essa mulher, e é isso que almejamos e temos perseguido aqui na Bahia, maior autonomia financeira para as pessoas”, declarou.
A metodologia diferenciada e específica utilizada pelo projeto é também destacada pelo diretor-presidente da CAR, Wilson Dias. “O trabalho começa no processo seletivo dos beneficiários, com a identificação da raiz da pobreza das famílias que não têm acesso a serviços e oportunidades. “O Pró-Semiárido investe de acordo com a vocação produtiva local. Essa ação diferenciada fez com que o FIDA, organismo internacional, que financia o projeto, o reconhecesse como de maior importância dentre todos os outros que existem no mundo inteiro”, ressaltou.
O oficial de projetos do FIDA no Brasil, Hardi Vieira, informa que para o Pró-Semiárido ter sido considerado o melhor projeto foram analisados aspectos como a focalização. “Há um trabalho com critérios muito bem estabelecidos nas comunidades. Neste processo, também temos os mecanismos de focalização de gênero, de participação da juventude, de comunidades tradicionais como quilombolas e fundos e fechos de pasto. Outro diferencial é o mecanismo de assistência técnica com a rede de parceiros de organizações da sociedade civil que prestam esses serviços para essas comunidades”.
Para o coordenador do Pró-Semiárido, Cesar Maynart, as Cadernetas Agroecológicas representam a ação central do projeto. “As Cadernetas dão uma concretude muito grande ao trabalho com gênero. Além de magnificar este trabalho, dão uma linha condutora ao discurso que sempre defendemos”, disse.
A assessora de Gênero do Pró-Semiárido, Elizabeth Siqueira, destaca a grandiosidade do Pró-Semiárido quando se analisa dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que evidenciam a situação das mulheres, principalmente as pretas e indígenas, como o segmento social mais pobre .”É um projeto que trabalha numa perspectiva de inclusão das mulheres no desenvolvimento rural e que leva essas mulheres a um processo de empoderamento, individual e coletivo”. Ela ressalta ainda que, entre os projetos do FIDA que trabalham com gênero, o Pró-Semiárido visa englobar uma relação de trabalho transversal na sua abordagem em todas as ações, seja no componente social, produtivo, ambiental ou nos empreendimentos.
Para a assessora, os resultados de utilização das Cadernetas Agroecológicas, antes mesmo da análise de quaisquer dados e impactos numéricos, já são visíveis no resgate, valorização e apoio dado às mulheres, com mudança, inclusive, da postura do homem em relação às agricultoras. “Esse processo cria uma conscientização de quem é essa mulher, que produz, que cuida, que é um braço forte no desenvolvimento social, político, econômico e cultural das comunidades e dos territórios onde o projeto atua. Os impactos estão na participação real das mulheres nas associações, como Agentes Comunitários Rurais (ACRs). Muitas são técnicas agrícolas com Nível Superior, que coordenam a ação de assessoramento técnico. É esse olhar, essa consciência, essa autoestima construída a partir da participação real nas ações do projeto, como um todo, que evidenciam esta história de sucesso”.
O FIDA é a única agência financeira especializada para o tema da agricultura familiar e desenvolvimento rural e trabalha com operações em 98 países ao redor do mundo, na África, Ásia, Oriente Médio e América Latina. No total, são 231 projetos, o que representa aproximadamente US$ 13 bilhões de dólares em projetos em andamento. Hardi Vieira assinala que, hoje, o Pró-Semiárido tem conseguido praticamente 90% de desembolso e tem mostrado um desempenho muito forte na parte financeira, de aquisições em contratos, no trabalho de comercialização e de acesso ao mercado. “A chave para esse sucesso e o mais importante é o compromisso e a prioridade do Governo do Estado da Bahia, a liderança da CAR e a excelente gestão do projeto”.
O Programa Semear Internacional é um programa do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), implementado pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), que possui cinco frentes de trabalho: Gestão do Conhecimento, Monitoramento & Avaliação, Comunicação, Diálogo de Políticas e Cooperação Sul-Sul. O Semear Internacional atua no Brasil com ações ligadas à sistematização e disseminação de boas práticas que possam ser adotadas e replicadas pela população rural para melhorar suas condições de vida, facilitando o acesso a saberes e inovações no semiárido brasileiro. O Pró-Semiárido é um dos seis projetos apoiados pelo FIDA e pelo Programa Semear Internacional. As Boas Práticas Rurais implementadas pelos projetos que são apoiados pelo FIDA, com o suporte do Programa Semear Internacional, podem ser vistas em seis projetos: Dom Helder Câmara II, Pró Semiárido, Paulo Freire, PROCASE, Dom Távora e Viva o Semiárido. A atuação acontece nos estados da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Rio Grande do Norte, Piauí, Espírito Santo, Alagoas, Sergipe, Minas Gerais e Ceará.
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Maria Augusta da Luz – É Jornalista com formação em Direito e Artes Cênicas. Especializada em produções audiovisuais, atua diretamente junto às comunidades rurais da Bahia para divulgação de reportagens que evidenciam a realidade enfrentada por essa população no país