LUÍS AUGUSTO GOMES
“Esquerda” e “direita”, como num jogo de gato e rato, vêm se engalfinhando em Salvador desde a volta das eleições diretas em capitais, em 1985, quando foi eleito Mário Kertész, apoiado pela “esquerda”. Desde então, em algum sentido, a cidade vem assistindo a um desfilar de desastres.
Mas para uma visão melhor do processo é preciso recuar pelo menos até seis anos antes, quando Kertész, ainda na vigência do regime militar, fora nomeado prefeito pelo também nomeado governador Antonio Carlos Magalhães (1979-1983).
Se sua primeira gestão, tutelada, teve aspectos de excelência, a segunda, na fase democrática, como opositor a ACM, caracterizou-se por erros nos campos político e administrativo pelos quais, embora se diga que o povo não tem memória, o ex-prefeito paga até hoje.
Além dos escombros milionários do projeto do “bonde moderno”, Kertész, que agiu como quis à frente da máquina e do partido, terminou negociando a sucessão para Fernando José, um radialista popular que ele sabia absolutamente inepto.
Kertész sucessivamente perdeu eleições para deputado federal e para prefeito, afastando-se da política, à qual só retornou agora, para nova derrota.
Erro de ACM derrotou Castro em 92 – A eleição seguinte, em 1992, veio trazendo novamente personagens do passado recente. No caso, o último ex-prefeito biônico, Manoel Castro (1983-1986), representando a “direita”, apoiado pelo governador Antonio Carlos Magalhães, que voltara ao poder pelo voto dois anos antes.
O quadro de destruição física e incapacidade financeira de Salvador, produto das duas gestões anteriores, apontava para o retorno do carlismo também na capital, o que não ocorreu em razão do apoio desmedido que ACM, em pleno período eleitoral, deu ao então presidente Fernando Collor, envolvido na malha de corrupção que o derrubaria.
A “esquerda”, com Lídice da Mata, conseguiu o que parecia apenas um sonho: a vitória nos dois turnos. Entretanto, rasgando o projeto democrático de gestão que havia proposto, a prefeita nem mesmo soube administrar os parcos recursos do município, que quatro anos depois estaria sob lixo, esburacado e devendo seis meses de salários.
Eleitoralmente, sobrou para Lídice, que dois anos depois não se arriscou a um mandato federal e chegou à Assembleia Legislativa num dos últimos lugares. Precisou de tempo e de uma campanha majoritária perdida para reequilibrar-se e progredir, sendo um caso raro de recuperação.
Com Imbassahy, o carlismo como Deus fez – Era um quadro propício para o adversário ocupar o Palácio Thomé de Souza, elegendo-se, em 1996, Antonio Imbassahy, cujo governo teve as marcas tradicionais do carlismo – grandes avenidas construídas e ampliadas, tratamento visual mais apurado nos pontos importantes.
Era ainda uma fase de transição democrática, de modo que não eram percebidos pelos operadores os contornos da nova cena política, os quais não comportavam mais a repressão e o arbítrio, que Imbassahy, supervisionado por ACM, teve de praticar.
Dois exemplos são a demissão sumária de quatro mil empregados sem pagamento de direitos, ainda que houvesse possibilidade legal, e a varrição de milhares de ambulantes de locais diversos da cidade, fazendo-se inimigo dos movimentos sociais. Fora do poder, perdeu as duas eleições majoritárias que disputou.
Carneiro em pele de raposa – Os oito anos seguintes são, justamente, os que se extinguiram no dia 31. Cansativos de contar, porque cheios de vaivéns e controvérsias que desde o momento em que começaram a ocorrer não pararam mais.
Em 2004, a “esquerda” ficou dividida entre Nelson Pelegrino e Lídice da Mata, e a “direita” marchou com César Borges. João Henrique, com a simpatia das causas populares que moveu como parlamentar, apareceu pelo meio e venceu.
Não demorou muito a, pelo despreparo e inconsistência, alcançar o posto de prefeito mais reprovado do país, situação de que lhe foi tirar uma manobra do então ministro Geddel Vieira Lima, que anteviu a chance de levá-lo à reeleição e ter uma cidadela segura para outros passos que pretendesse dar.
A tragédia de João Henrique está muito presente para que se perca tempo a relatá-la. Como consolo a quem foi tão criticado, resta-nos elogiar a esperteza e dissimulação do agora ex-prefeito, pois com o histórico que trazia conseguiu dar uma rasteira numa raposa como Geddel.
A cidade a seus pés – Eis que os sinos de 2013 anunciam uma nova época em que a “direita” superou a “esquerda” com o candidato mais simbólico que poderia ter. E o prefeito eleito assume o poder com a herança de nome e de grupo político ligado a gongóricas realizações.
Mas para ter êxito nessa empreitada terá de levar em conta o cabedal de votos que recebeu e o que eles verdadeiramente representam. O candidato ACM Neto percorreu as entranhas da cidade e assumiu compromissos que em muitos casos conflitam com grandes interesses que poderão estar a sua volta.
O prefeito vai precisar ser rigoroso no cumprimento da lei e das posturas municipais, sem ultrapassar a linha que conduz à injustiça ou à discriminação. E deverá confirmar na prática o diálogo que manteve na campanha com todos os estratos sociais, pois assim terá, como o barraco da letra imortal, a cidade a seus pés.
Como no Brasil de 20 anos atrás, na Bahia de hoje também se desenrola uma transição, e será essencial o prefeito compreendê-lo em espírito. Primeiro, porque é verdade, e depois porque o passivo de Salvador é tão grande que ele não poderá resgatá-lo sem promover o máximo de concórdia. (Por Escrito)