por Antônio Raimundo da Silveira
No Brasil os indígenas só são lembrados no Dia do Índio ou, por exemplo, quando há conflitos de terras em áreas reivindicadas por remanescentes de antigas tribos. Em nosso cotidiano eles são apresentados como seres exóticos e arredios que vivem no mato e, aparentemente, sem ligação alguma conosco.
Embora tenham sido uma das matrizes responsáveis pela formação do povo brasileiro, os habitantes nativos do Brasil são relegados ao esquecimento e até as estatísticas oficiais são utilizadas para escamotear sua participação no caldeirão étnico que forma nossa população.
Um exemplo flagrante tem como referência o Censo realizado pelo IBGE. Já se tornou padrão dizer-se que a população brasileira é formada por “x” por cento de brancos e “x” por cento de negros (pardos mais pretos).
Trata-se de tema recorrente em entrevistas, artigos, declarações oficiais e coisas que tais. A participação indígena na formação do nosso povo desaparece como por encanto por conta desse tipo de abordagem.
Dados censitários
O Censo de 2000 revela a existência de pouco mais de 700 mil índios, número que corresponde a menos de um por cento da população do país. Como o Censo é feito com base na declaração do recenseado (e nossa herança indígena foi apagada meticulosamente de nossas mentes com o passar do tempo), quando se fala sobre cor da pele e raça no Brasil automaticamente nos defrontamos com o binômio branco/negro. Tudo nos leva a acreditar que o legado indígena não existe.
Se há pretos que não têm consciência da sua própria raça e declaram-se como morenos, imagine quem tem ascendência indígena e nem sabe disso. Portanto, caso alguém que tenha antepassados indígenas se declare moreno, moreno escuro, mestiço, misturado ou seja lá o que for, oficialmente será classificado como pardo.
Na verdade, os dados censitários referem-se apenas aos índios que vivem nas reservas, falhando na determinação de seus descendentes que certamente formam a maioria da população brasileira.
Parte dessa multidão branqueou através do processo de miscigenação com brancos, outra parte manteve características típicas dos índios, outros escureceram no cruzamento com pretos e um quarto grupo ficou naquela faixa ambígua em que os indivíduos apresentam sinais nítidos da mistura de raças. O Censo engloba sob o rótulo de pardos — que corresponde a 40,4% da população brasileira — as pessoas originárias da mistura de raças, sejam brancos com pretos, brancos com índios, pretos com índios, etc.
Prova científica
Pesquisa realizada pelos departamentos de Bioquímica e Biologia da Universidade Federal de Minas Gerais constatou cientificamente parte dessa realidade.
Tomando-se como base 200 homens e mulheres brancos, de regiões e origens sociais diversas, os pesquisadores Sérgio Pena, Denise Carvalho Silva, Juliana Alves Silva, Vânia Prado e Fabrício Santos examinaram amostras de DNA do grupo e detectaram que de cada 100 delas só 39 têm linhagem exclusivamente europeia. Os restantes 61% são frutos da miscigenação, isto é, 33% são misturados com índio e 28% com preto. Imagine o que se detectará quando amostras do DNA de pardos e pretos forem analisadas.
Pardo ou mestiço?
Para efeito de recenseamento, leva-se em consideração a autodeclaração feita pelo recenseado sobre sua identidade étnico-racial. Dessa forma, quem não se declara como branco, preto, índio ou amarelo é classificado como pardo.
É o caso de quem diz que é mestiço, mameluco ou caboclo (cruzamento de índio com branco), mulato (cruzamento de branco com preto), cafuzo (cruzamento de preto com índio), moreno e por aí vai.
Para tornar mais visível estatisticamente o processo de miscigenação ocorrido no Brasil, o IBGE deveria utilizar o termo mestiço, em vez de pardo, para classificar as pessoas resultantes da mistura de raças.
Sem ser índio, nem europeu, nem negro, o mestiço cria sua própria identidade étnica: a brasileira (Darcy Ribeiro, em “O Povo Brasileiro”)
Genocídio estatístico
O Censo de 2000 revela que a população brasileira é formada por 53,8% de brancos, 39,1% de pardos, 6,2% de pretos e 0,9% de amarelos e índios. Na determinação do número de negros (ou afrodescendentes), o que se faz é somar o total de pardos (39,1%) ao de pretos (6,2%), que seria desse modo 45,3% da população brasileira.
Posto nesses termos, os números oficiais deixam entender que os descendentes de índios não têm participação alguma no total da população brasileira.
Quem levou o IBGE a adotar a ideia estúpida de que pardos são todos negros parece desconhecer que a maioria da população da região Norte é parda, fruto da mistura de índios com outras raças. No entanto, oficialmente são classificados como negros.
Como se não bastasse terem suas terras invadidas por estrangeiros no início da colonização, terem sido escravizados, massacrados e discriminados, nossos antepassados indígenas veem, dessa forma, sua descendência tornar-se vítima de um autêntico genocídio estatístico.
Todos parecem esquecer que o Brasil é um país majoritariamente mestiço com forte presença do índio em sua formação. Euclides da Cunha, um mameluco, atribuía a extinção do indígena em várias regiões do país mais aos cruzamentos sucessivos com brancos e negros do que a verdadeiros extermínios praticados pelos portugueses. Calcula-se que quando os portugueses descobriram o Brasil existiam cerca de oito milhões de índios em nosso território.
A teoria de Euclides da Cunha tem tudo para ser verdadeira. Caso não seja, estaríamos diante de um processo genocida comparável ao holocausto judeu, que resultou na morte de seis milhões de pessoas nos campos de concentração da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Castigo
Quem nunca ouviu falar de uma avó, bisavó ou tetravó índia “pegada no mato a dente de cachorro” ou “a casco de cavalo”? Os primeiros mestiços brasileiros foram os mamelucos, resultado das relações dos portugueses com as índias. Só com a chegada dos escravos africanos a mestiçagem se intensificou, surgindo os mulatos, os cafuzos e finalmente os pardos, que seriam a mistura de todos eles.
O engraçado é que tentam eliminar o elemento indígena das estatísticas, mas o dia a dia estampa em nossa cara indícios que os manipuladores não conseguem apagar. Embora imperceptíveis de um lado e flagrantes em outros, os hábitos, costumes e palavras de origem indígena aparecem em demasia aonde quer que a gente vá.
Dos nomes dos Estados (Pará, Paraná, Pernambuco, Paraíba, etc) aos das cidades e municípios (Itaparica, Itabuna, Itacaré, Araraquara, Taubaté, Curitiba, Aracaju, Niterói, etc), as palavras indígenas estão presentes em todos os momentos da nossa vida como se fossem um castigo dos nossos antepassados àqueles que teimam em eliminá-los do nosso imaginário.
Quem, no Brasil, nunca tomou banho num rio (Paraguaçu, Piracicaba, Jiquiriçá, Tietê, etc) ou numa praia (Itapuã, Iracema, Pajuçara, etc) com nome indígena? Ou conhece um bairro (Ipanema, Pituba, Iguatemi, Itaigara, Cambuci, Tatuapé, Jaçanã, etc) ou uma pessoa (Cauby, Janaína, Ubiratã, Jurema, Maíra, etc) com nome de origem indígena?
Pipoca com guaraná
Diariamente convivemos com nomes de objetos, comidas, crendices (você sabia que o Saci é originalmente indígena?), fenômenos naturais, nomes de lugares, de pessoas, espécimes da fauna e da flora, frases feitas e ainda termos de uso geral herdados de nossos antepassados indígenas.
Além disso, há inúmeros casos de verbos híbridos, formados com raízes indígenas — principalmente tupi — e terminações portuguesas.
Usamos em nosso cotidiano palavras como abacaxi, anágua, beiju, cajá, capim, capivara, cipó, guaraná, guri, jacarandá, jacaré, jaguar, jiboia, maracujá, mingau, muriçoca, mutirão, pereba, perereca, peroba, peteca, pindaíba, pipoca, pirarucu, siri, siririca, tabaco, tabaréu, taboca, tipoia, urubu e xexéu.
Apesar da relação ser extensa, elas formam apenas uma diminuta parte da rica e variada linguagem que herdamos dos habitantes originais da terra. Na realidade, não é possível articular longas conversas em português brasileiro que não tenham palavras originárias do tupi ou de outras línguas indígenas.
Língua geral
Se não fosse o Marquês de Pombal, que em 1758 proibiu o uso do tupi e instituiu o português como língua oficial do Brasil, hoje estaríamos falando tupi ou no mínimo seríamos um país bilíngue. Até então falava-se uma língua aprendida com os índios, o nheengatu, ou língua geral, uma variação do tupi compilada pelos jesuítas.
Estima-se que mais de 10 mil vocábulos em português brasileiro foram herdados da língua geral. Quando os lusitanos chegavam ao Brasil tinham que aprender o nheengatu para se fazerem entender pelos nativos.
Tomando-se como base os critérios estatísticos do IBGE, se a intervenção do Marquês de Pombal não tivesse acontecido estaríamos vivendo atualmente uma situação surrealista: um país com língua, hábitos e costumes indígenas, mas habitado apenas por brancos e negros, como querem nos fazer acreditar.